. AS OBRAS DA CARNE
“Vídeo melíora, proboque; Deteriora sequer” – Olvídio:
(Tradução: “Vejo as coisas melhores, e concordo com elas, mas sigo as piores” – Olvídio).
“Os homens amam e odeiam os seus vícios ao mesmo tempo” – Sêneca.
O termo “carne” representa certa complexidade de ideias nas Escrituras Sagradas, envolvendo sentidos literais, metafóricos e espirituais. Temos aqui em fase embrionária um tema que mais tarde seria desenvolvido na carta aos Romanos: o conflito entre a carne e o espírito (Rm 7)
1. A Carne e o Gnosticismo: O Novo Testamento, em contraste com o gnosticismo não ensina a pecaminosidade do corpo físico ou princípio material. Ambos podem ser usados na promoção do mal, e o corpo físico é fácil de ser tentado ao pecado; mas a matéria, por si mesma, é moral e espiritualmente neutra.
(1) O Gnosticismo:
1) O espírito é puro.
2) O corpo é mau, porque o princípio do mal reside na própria matéria.
(2) A Doutrina Cristã:
1) O espírito humano é decaído, pois o homem essencial é o espírito, ao passo que o corpo físico é apenas um veículo.
2) O corpo físico é moralmente neutro, embora sirva de instrumento que, naturalmente, tenta ao pecado, conforme se dá, por exemplo, nas questões sexuais, ou na glutonaria, ou seja, através dos apetites.
2. A Carne e a Filosofia: Platão aludiu ao corpo físico como o sepulcro ou a prisão da alma. O Novo Testamento não compartilha de tão melancólica atitude, embora valorize muito mais o espírito do que o corpo físico – alvo da carreira cristã é a liberdade em um corpo novo ou espiritual, em que o antigo veículo é deixado para trás (1 Co 15.35ss). O corpo nos sujeita a certa variedade de tentações, por causa de sua debilidade (Mt 26.41). A lei de Deus envolve maior número de mandamentos do que podemos manusear devidamente em meio a essa fraqueza (Rm 8.3). O corpo está sujeito a debilidade que nos servem de empecilhos (Gl 4.13), além de ser instrumento fácil do pecado, conforme se vê no sétimo capítulo da epístola aos Romanos. O corpo físico é mortal e, portanto, fraco (2 Co 4.11).
3. O Uso do Termo “Carne” na Bíblia. A carne é o tecido muscular dos animais. Vem nas páginas bíblicas com diversos significados:
(1) A Palavra Aparece no Sentido Literal. “Quem nos dará carne a comer?” (Nm 11.4c) murmuravam os israelitas no deserto. No começo o homem era vegetariano (Gn 1.29), depois Deus deu a Noé a ordem de comer carne (Gn 9.3,4); providenciou sustento para Elias, mandando-lhe pão e carne (1 Rs 17.6).
(2) A Criação Animal, que inclui o homem e os animais irracionais (Gn 6.13,17. 19; 7.15; Mt 24.22; 1 Pe 1.24). O corpo vivo, tanto dos homens quanto dos animais (Gn 41.2,19; Jó 33.21; 1 Co 15.39), o corpo em distinção ao espírito (Jó 14.22; 19.26; Pv 14.30; Is 10.18; Jo 6.25).
(3) A Carne é a Humanidade de Jesus. “E o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14a) “... agora nos reconciliou. No corpo da sua carne, pela morte” (Cl 1.21c e 22a) “... Cristo padeceu na carne” (1 Pe 4.1a), “Pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela sua carne” (Hb 10.20).
(4) A Carne é a Geração Física ou Natural (Gn 29.14; 37.27; Jo 1.13).
(5) Carne é o Padrão Humano: “Não consideramos a ninguém do ponto de vista humano” (2 Co 5.16 RSV)
(6) Ter nascido somente segundo a carne é estar perdido (Gl 4.29)
(7) A Carne é a Sede das Tentações (Rm 7.18-25; 8.5,12 13; 1Jo 2.16).
(8) Um Outro Homem Mortal (Is 58.7).
(9) Existe uma Mente Carnal, que é a natureza pecaminosa do homem que opera através de sua mente e de todo o seu ser (Rm 8.7; Cl 2.18).
(10) A Carne é o Poder do Homem, o Valor da Humanidade. Quando Senaqueribe, rei da Assíria, preparou uma guerra contra Ezequias, rei de Judá, este, sendo crente fiel, confiou na proteção de Deus e animou o seu povo com estas palavras: “Com ele [Senaqueribe] está o braço de carne, mas conosco o Senhor nosso Deus” (2 Cr 32.8a). O resultado foi que Deus mesmo destruiu poder do rei da Assíria. O profeta Jeremias diz: “... Maldito o
(11) homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor” (Jr 17.5b). “toda a carne é como erva, e toda a glória do homem como a flor da erva” (1 Pe 1.24), significando, estas palavras, a brevidade da vida humana. A carne, o valor humano, é tão fraca, como a flor do campo.
(12) A Carne é uma Natureza Branda, Obediente a Deus: O salmista expressando o desejo de se aproximar de Deus, o anelo de sua alma pela presença do Senhor, fala deste modo: “... o meu coração e a minha carne clamam pelo Deus vivo” (Sl 84.2b). Referindo-se ao futuro glorioso dos filhos de Israel, Deus promete fazer com que eles se convertam e voltem ao seu Deus e Senhor. A predição é: “Tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei um coração de carne” (Ez 11.19b).
(13) A Carne é a Inclinação Má, a Tendência para o Pecado: “o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mc 14.38b), “... a inclinação da carne é morte... Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus” (Rm 8.6,7b). Ainda “... na minha carne, não habita bem algum” (Rm 7.18b); “... a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis” (Gl 5.17). A luta que existe dentro de nós é produzida por um impulso do desejo de obedecer a Deus e outro da natureza má que a Bíblia chama de carne.
(14) A Natureza Sensual do Ser Humano. Incluindo seus desejos naturais. Isso não precisa incluir qualquer sugestão de depravação (Jo 1.13) ou ter tais conotações (Mt 26.41; Mc 14.38).
(15) Uma Expressão Eufêmica para os Órgãos Sexuais (Gn 17.11; Êx 28.42; Lv 15.2,3; 2 Pe 2.10; Jd 7).
4. O Sentido Moral e Teológico:
(1) “Carne” (gr. sarx) é a natureza pecaminosa com seus desejos corruptos, a qual continua no cristão após a sua conversão, sendo seu inimigo mortal (Rm 8.6-8; Gl 5.17,21). Aqueles que praticam as obras da carne não poderão herdar o Reino de Deus (Gl 5.21). Por isso essa natureza carnal precisa ser resistida e mortificada numa guerra espiritual contínua, que o crente trava através do poder do Espírito Santo (Rm 8.4-14).
(2) [Do heb. basar; do gr. sarx e do lat. Carnem]. Nas Sagradas Escrituras, o termo é usado tanto para descrever a natureza humana, como para qualificar o princípio que está sempre disposto a opor-se ao espírito. Este último sentido foi desenvolvido como doutrina pelo apóstolo Paulo. O crente carnal, segundo muito bem explica em suas epístolas, é o que dá inteira guarida ao pecado.
Sarx:
1) Significa “humanamente falando”: “Jesus descendeu de Davi segundo a carne (Rm 1.3; 4.1).
2) “Julgando por padrões humanos”: “Não muitos sábios segundo a carne” (1 Co 1.26)
3) Significa “humanidade”: “Nenhuma carne será justificada diante dele pelas obras da lei” (Rm 3.20; Gl 2.16; 1 Co 1.29).
4) É inimiga do espírito (Gl 5.17). Inimiga suprema no conflito na alma.
5) Torna a lei fraca e enferma (Rm 8.3).
6) É a responsável pela situação humana sempre repetida, em que o homem sabe com perfeita clareza o que deve fazer, mas é totalmente incapaz de fazê-lo.
7) Na sarx não habita nada de bom (Rm 7.18).
8) É a sarx que torna o homem incapaz de assimilar o ensino que deveria receber (1 Co 3.1-3).
9) A sarx não pode agradar a Deus (Rm 8.8).
10) Pior do que isso, sarx é essencialmente hostil a Deus (Rm 8.7).
5. Dois Mundos: O cristão vive em dois mundos ao mesmo tempo. Esta é a razão por que a carne “milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, porque são opostos entre si” (Rm 7.20; Gl 5.17). Onde existe uma condição de conflito, a perda da liberdade de ação é o resultado inevitável. A vitória contra este inimigo (o pecado reside em nós) não vem sem luta ou num minuto. Graças a Deus a vitória virá por Cristo!
“A igreja deve ser a luz do mundo, e não o receptáculo das trevas deste mundo” – Shore
6. Os Três Tipos de Homens (1 Co 3)
(1) O Homem Natural (gr. psuchikos): “da alma”. Não regenerado. Entende as palavras, mas rejeita os conceitos.
1) Significado de psuchikos:
• O mesmo termo é traduzido “sensuais” em Jds v.19. No sentido de ser governado apenas pelos sentidos naturais da alma, e não pelo Espírito Santo.
• O mesmo termo ainda é traduzido animal em relação à sabedoria, que não procede do Espírito Santo, e sim da capacidade puramente humana.
• Natural também significa “Não-Trabalhado”: Ou seja, não transformado, não modificado, não processado, não cultivado. Como a madeira bruta cortada do tronco, ou uma pedra como se encontra na pedreira; não polida, nem esculpida.
2) Os Impedimentos do Homem Natural.
1- Ele não compreende as coisas de Deus. Sua mente carnal não alcança nem valoriza as coisas divinas porque não tem o Espirito Santo.
2- Ele não discerne as coisas de Deus, porque elas são espirituais (Ef 2.3; At 26.14; 2 Pe 2.12).
3- Ele desconhece completamente as coisas sobrenaturais de Deus. Ele só entende as coisas materiais. As coisas deste mundo. Desta vida.
(2) O Homem Carnal (gr. sarkinois): “Humanos”. Porque eram nenês na fé. Cristãos controlados pela natureza humana decaída. Se vê que o homem carnal é crente e salvo. Não obstante, sua vida cristã é mista, dividida e marcada por constantes subidas e descidas. Ele é um crente que começa pelo Espírito e termina pela carne (Gl 3.3). A natureza humana pecaminosa, existente em todo crente, embora não possa ser mudada, precisa ser modificada e vencida pelo poder do Espírito Santo (Cl 3.5; Gl 2.19; 6.14; Rm 8.13). Nem todo crente vive uma vida consagrada, nem se acha disposto a vencer plenamente a natureza adâmica. A sua velha natureza estava livre para agir ao invés de “levar cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2 Co 10.3-5). Isso só será obtido por nossa inteira submissão a Cristo, como nosso Senhor, e pela obra santificadora do Espírito Santo em nosso ser (Rm 6.13; Gl 5.16). Conforme está escrito em Rm 6.11, não é o pecado que morre dentro do crente, é o crente que deve morrer para o pecado e viver para Deus. Também, conforme Gl 6.14, não basta o mundo estar crucificado para o crente; o crente é que tem de estar crucificado para o mundo. Um dos grandes perigos da vida cristã consiste em descer da cruz.
1) O Relacionamento do Homem Carnal com Deus. Ele entristece o Espírito Santo, fazendo o que bem quer. O Espírito Santo não pode levá-lo à uma vida cristã abundante, poderosa e triunfante, porque o tal crente é imaturo e acha-se preso às coisas desta vida e deste mundo.
2) A Condição do Homem Carnal. Ele está dividido: em parte vive para Deus, e em parte vive para agradar a si mesmo. Enquanto o Homem Espiritual vive no plano superior “das regiões celestiais”, o carnal vive mais na esfera do terreno, porque sua visão está voltada para o natural.
3) Características do Homem Carnal.
1- Seu alimento é o leite: É todo o desígnio de Deus (At 20.27; Hb 6.1) em forma simples. O alimento sólido é o mesmo alimento, porém desenvolvido e aprofundado. O leite não pode ser “falsificado” (1 Pe 2.2). Filo, o famoso filósofo judeu neoplatônico (30 a.C – 50 d.C), empregou o mesmo simbolismo, como segue: “Sabendo que o alimentos dos bebês é o leite, mas os adultos se alimentam de pão e trigo, também deve haver nutrientes para a alma que se assemelham ao leite, próprio para o período da infância... como também aqueles próprios para os homens adultos”.
“Cristo é leite para os bebês e carne para aos adultos” – João Calvino.
“Você ensina as mesmas doutrinas para uma classe de crianças, e para uma classe de doutorado... a diferença é de aprofundamento” – Hernandes Dias Lopes.
2- Ele é ciumento (gr. zelos): Rivalidades e contendas são sempre indício de carnalidade. Gosta de contender e acha isso uma virtude.
3- É espiritualmente infantil; Imaturo (1 Co 3.1).
4- Ele não apresenta o progresso espiritual, esperado pelo tempo de fé que professa (Hb 5.11-14).
5- Ele é sectário e dado a isso (1 Co 3.4)
6- É dominado pela inveja (1 Co 3.3)
7- Não se aflige ante os problemas da igreja, como ocorria em Corinto (1 Co 5.1-13; 6.13-20).
8- O carnal, com naturalidade e facilidade, move ação judicial contra a igreja e os irmãos na fé (1 Co 6.1-8).
9- O crente carnal vive uma vida mista, querendo agradar a si mesmo, aos outros, ao mundo e a Deus (1 Co 10.20,21).
(3) O Homem Espiritual (gr. pneumatikos).
1) O Relacionamento do Homem Espiritual com Deus.
1- O Homem Espiritual aceitou a Cristo como seu Salvador e “nasceu de novo” espiritualmente (Jo 3.5).
2- Ele submete-se inteiramente a Cristo como seu Senhor, em todas as áreas da sua vida.
3- Ele é cheio do Espírito Santo. Tem vigor e vida espiritual abundante, como ocorre entre o tronco e os ramos da videira (Jo 15.5).
2) Características do Homem Espiritual:
1- É aquele que vive guiado pelo Espírito (Rm 8.9,14)
2- Tem Discernimento: O Espírito em nós fornece uma nova capacidade de discernimento (gr. anakrinetai).
3- Ele julga. Avalia, peneira, examina com intenção de julgar os aspectos espirituais de tudo.
4- Tem a Mente de Cristo: O cristão terá a mente de Cristo, se ele deixar o Espírito revelar os pensamentos de Deus por meio das Escrituras.
7. O que São as Obras da Carne:
(1) Tipos de Obras:
1) Obras: Tudo quanto se faz, pela fé, visando à expansão do Reino de Deus. É a maior evidência de uma fé viva e eficaz em Deus (Hb 11)
2) Obra Sobrenatural: Realizações divinas além de nossa compreensão, desafiando às vezes, as leis da natureza. Se a obra sobrenatural desafia as leis da lógica, jamais contradiz a razão, porquanto esta nos foi dada por Deus, enquanto que aquela é um artifício meramente retórico.
3) Obras Penitenciais: Exercícios que visam a demonstrar pesar e tristeza pelo pecado. Constitui-se genericamente, em privações e autoflagelações, panos de sacos e cinzas , etc. para Deus, no entanto, o que vale mesmo é um coração quebrantado e mui solícito.
(2) As Obras da Carne, são produzidas pela força própria do homem em contraste com o Fruto do Espírito, que só existe pelo poder criador de Deus (1 Co 3.6; Jo 15.4,5)
(3) Elas são “conhecidas”: Isto é, são o tipo de coisa que todas pessoas conhecem bem, e não há probabilidade de serem disputadas. A libertinagem não pode ser levada a efeito em segredo. John Stott diz que a nossa velha natureza é secreta e invisível; mas as suas obras, as palavras e atos pelos quais ela se manifesta são públicos e evidentes. Hoje a tendência é inverter os valores morais – “relativismo moral”. À medida que o tempo avança a sociedade vai se tornando mais permissiva quanto ao pecado e os homens vão se distanciando cada vez mais de Deus.
8. As Obras da Carne como Uma Perversão:
(1) A imoralidade, a impureza, a libertinagem e a lascívia, são perversões do instinto sexual, que, por si só, é uma coisa bela e faz parte do amor.
(2) A idolatria é uma perversão da adoração.
(3) A feitiçaria é uma perversão das drogas terapêuticas na medicina.
(4) As invejas, os ciúmes e as contendas são perversões da nobre ambição e desejo de ser bem-sucedido que pode ser um incentivo à grandeza.
(5) A inimizade e a ira são uma perversão da justa indignação sem a qual a paixão pela bondade não pode existir.
(6) As dissensões e facções são uma perversão da unidade que deve caracterizar a Igreja do Senhor.
(7) As bebedices e glutonarias são uma perversão da alegria do convívio social e das coisas que os homens podem desfrutar de modo satisfatório e legítimo